domingo, 14 de novembro de 2010

Simonal: o rei da cocada preta

Temos grandes compositores e músicos na história da música brasileira. Como não admirar a intelectualidade de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento; a ousadia de Tom Zé e Tim Maia; a emoção dos sambistas Cartola, Noel Rosa e por aí vai. São muitos nomes. Mas, particularmente, como cantor de fato, admirar voz em si, ficar admirada com presença de palco e com domínio de público, tenho dois grandes ídolos: Ney Matogrosso e Wilson Simonal. O primeiro sempre ouvi falar, mas aos meus 15, 16 anos que fui me encantar, conhecer melhor, ir aos shows e ficar realmente fã. O segundo fui ouvir falar lá pelos 18 e imediatamente fiquei fã. O ápice do encanto se deu vendo os vídeos. Quando envolvida e conhecendo Simonal, fui compartilhar com meus pais minha nova 'descoberta' e imediatamente me falaram da sua conexão com a ditadura. Eu não pudia imaginar que isso tivesse sido tão sério.

Vendo o documentário de Simonal fui entender porque demorei a ouvir falar sobre ele. Famosos cantores da década de 1970 como Chico, Gil, Caetano, a gente nunca deixou de ouvir falar. Já o Simonal, se perdeu na história da música brasileira por uma história mal contada que se tornou uma verdade cruel. O fato é que o cantor achou que estava sendo roubado pelo contador, que negou. De acordo com o funcionário, o cantor tinha perdido um contrato com a Shell e os recursos dos shows eram insuficientes para bancar seu padrão de vida. Sem estar convencido, Simonal levou o funcionário pro DOPS pra que confessasse, a custa de torturas, o roubo. De acordo com o contador, ele resolveu inventar que estava roubando o cantor quando o torturador disse que traria a família dele para também sofrer agressões. O contador denunciou Simonal na delegacia civil e o cantor, quando viu que a coisa era séria, tentando ver uma saída e ter proteção, disse que tinha ligação com o DOPS. Daí todo o repúdio, julgamento e condenação da imprensa, da classe artística, e, consequentemente, dos brasileiros.

Daí em diante a história de Simonal caiu numa verdadeira tragédia, no seu sentido mais filosófico, explico. As infortunas que nos acometem sempre exigem boas deliberações, para que as desgraças as quais estamos destinados não piorem. Isso porque a existência humana, em si mesma, não é uma catástrofe, mas podemos cometer excessos em nossas atitudes ao tentarmos driblar o destino, desafiando os deuses. É justamente esse excesso que caracteriza a tragédia, sendo essa a representação cênica do drama que recai sobre os homens, tal drama representado pelos erros que estamos sempre suscetíveis pelos limites de nossa razão, as desgraças que estamos destinados, que não podemos nos livrar, mas podemos contribuir para que piore.

E acredito que foi isso que aconteceu com o cantor. Talvez ele estivesse destinado a uma desgraça, mas contribuiu para que piorasse. Sua vida não poderia ser uma catástrofe, mas cometeu excessos demais e isso arruinou sua vida. Diante de uma grande infortuna, Simonal agiu muito mal. Isso tirou o nome do cantor da história da música brasileira por muitos anos. Em 1992 voltou a aparecer, mas sempre com o fardo da ligação com a ditadura nas costas. Sua voz não era mais a mesma, assim como seu brilho e sua alegria. Ele vivia para provar que não tinha ligação com DOPS e que nunca havia dedurado ninguém. Como admiradora intensa dessa voz, suíngue e domínio de público de Simonal, assistindo ao documentário, tentei entender aonde ele errou. O que aconteceu para que a desgraça fosse tão grande.

Simonal era um cantor em plena ditadura. Mas isso, realmente, não lhe importava. Negro, de origem pobre, se preocupava muito mais em ostentar suas riquezas e mulheres. Era isso que lhe importava. Um único fio político que poderia ver em sua postura e algumas músicas diziam respeito ao preconceito contra negros. Só. Simonal ignorava completamente o contexto histórico. De primeira, eu diria que não o condenaria por isso. Quantos músicos hoje temos que estão se lixando pra política? Por outro lado, passei a ver que, num momento de radicalismos, de revolução, não dá pra ficar em cima do muro. Não dá pra fechar os olhos. Ou você tem um lado, ou em algum momento difícil será exigido uma postura sua que questiona de que lado está, porque não há uma esfera em que a ditadura pudesse ser ignorada. Simonal ignorou, menosprezou, e num momento difícil usou o DOPS para resolver um problema pessoal. Ora, mas DOPS não é coisa de esfera pessoal. Trata-se de algo que estava arrancando sangue, vidas e choros de mãe. Simonal não pensou. Ou diria Hannah Arendt, banalizou o mal.

Se Wilson menosprezou o DOPS, foi o que não fizeram a imprensa, a classe artística e militante. Se o cara diz que tem ligação com esse departamento, logo o acusam de ser dedo-duro. Foi a verdade criada que Simonal teve que enfrentar até a morte. E que só na década de 1990 foi possível provar que era mentira. Se o cantor não se importava de não ter um lado, de não lutar contra a ditadura, os seus colegas artistas-militantes se importavam. Se por um lado, ele nunca se mostrou contra ditadura, num deslize que ele pode ter se mostrado a favor, foi suficiente para condená-lo. Nesse escorregão do cantor, quem poderia o defender, não o fez. Daí vem um outro fator que contribuiu para tragédia do cantor: o ataque de uma classe formadora de opinião com a força esmagadora de uma imprensa. Que condena, julga e linxa sem haver provas, se aproveitando de um prato cheio.

Por fim, o último e mais óbvio fator: a cegueira que o sucesso e o dinheiro causam. Simonal adorava ostentar, dizia que não existe pobre feliz; bom mesmo é ter dinheiro. Além de pobre, ele era negro. O jeito de impôr seu respeito, além do talento, era com seu poder financeiro. Ele não queria perder isso, porque ele não queria perder o respeito. Ele sabia que era o rei da cocada preta. Mas achou que isso era infinito. Ficou tão cego, a ponto de usar do DOPS para torturar seu contador. Ele não queria saber como ia sua renda, seus contratos, mas de gastar com o que quisesse. Ao ver que as coisas não iam bem, era mais fácil condenar um funcionário do que entender o que estava acontecendo e baixar a bola.

Ao contrário do que meio Brasil fez e ainda faz, eu não condeno Simonal. Eu não o repudio. O cara errou. Pisou na bola feio. Não soube lidar com os erros. Jamais deixarei de ouvir e o elogiar em mesas de bar pelo. É um dos maiores cantores do Brasil, uma das vozes mais bonitas, tem um dos maiores suingues, quem conseguiu, desde então, dominar uma platéia como ele? Os cantores também são humanos e erram. Que fique seu talento e contribuição para história da música brasileira.

3 comentários:

  1. Olá,

    qual é teu email de contato?

    Obrigado!

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  2. Não é deixar de perdoar o Simonal, mas se ele levou o contador pro DOPS é que ele realmente tinha amigos lá. Ser amigo de torturadores, naquela época - e isso o filme do Cláudio Manoel não aborda - era um fato grave, do mesmo modo que alguém podia ser torturado ou morto por ser amigo de um militante de esquerda procurado.

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e aí?