domingo, 24 de outubro de 2010

Agentes de ditadura: Punir ou não punir?

Lei criada em 1979 concede a anistia a todos que cometeram crimes políticos. Impunidade ainda é questionada


Marcantônio Dela Corte e Juarez Maia em 1968. Um ano antes foram presos distribuindo panfletos em defesa da Amazônia.

Marcantônio Dela Corte era um jovem cheio de ideais, sonhava e lutava por um país democrático. Em 1963, pouco antes do golpe militar, pertencia ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), militava nos movimentos estudantis e trabalhava na TV Anhanguera. Em 1966, com a queda do PCdoB no estado, Marcantônio foi preso pela primeira vez por 40 dias, quando o Habeas Corpus ainda era possível. “Eu tinha 20 anos, por mais que tivesse estrutura, fiquei numa solitária, sem o mínimo contato com as pessoas. Dormia no cimento frio, praticamente de cueca: uma situação na qual o ser humano perde as referências” relata.

Assim que veio o AI-5, tudo ficou muito mais difícil e esse processo condenou Marcantônio a três anos de prisão. Até lá ele militou na clandestinidade e também na legalidade, por meio dos movimentos estudantis. Em 1967 Marcantônio e seu companheiro, Juarez Maia (hoje professor de Jornalismo na Universidade Federal de Goiás), foram presos em flagrante distribuindo panfletos em defesa da Amazônia, vítima da grilagem de terras praticada pelos norte-americanos. “Tivemos pena de confinamento. Não podíamos sair de Goiânia e éramos monitorados em tudo que fazíamos. No país, éramos somente eu, Juarez e Jânio Quadros os confinados”, conta Marcantônio.

Em 1969 o AI-5 já vigia e Marcantônio foi preso em flagrante com sete companheiros. Fez uma viagem sob condições desumanas até Juiz de Fora, onde ficou encarcerado num presídio de segurança máxima por três anos. Juarez havia se desfiliado do movimento chamado Ação Popular e juntou-se a um grupo de resistência armada ao regime militar, do qual pertencia a atual candidata a presidência Dilma Roussef. Atuou na região de Goiânia, foi condenado em várias instâncias em Juiz de Fora e foi viver clandestinamente no Rio de Janeiro por quase três anos. Depois, doente e debilitado fisicamente, buscou caminho do exílio no Chile.

Anistia


Em 1979 foi promulgada pelo presidente Figueiredo a Lei da Anistia, ou Lei nº 6.683. Ela estabelece que a anistia é concedida a todos que, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais e aos que tiveram seus direitos políticos suspensos. Aqui compreende-se torturados e torturadores. Isso significa que aqueles que prenderam e torturaram Marcantônio, Juarez e tantos outros, ficaram impunes.



“Houve muitas negociações, participei da luta pela anistia quase diariamente. Ela realmente foi negociada”, afirma Marcantônio. Ele diz ainda que as forças políticas democráticas naquela época não eram tão fortes a ponto de aprovar outros avanços nessa lei, como a punição dos torturadores. “A partir de 1973 quase todo pessoal da luta armada já estava preso. Foi uma votação apertada pela anistia”, diz.

A partir de então, acontecia um franco processo de abertura. Por outro lado, o regime militar vinha, a cada dia, perdendo o prestígio e força. O fracasso do milagre econômico de Médici, por exemplo, veio a agravar as desigualdades e miséria, além de elevar inflações. O clamor social era muito forte por uma redemocratização. Em 1984, o movimento Diretas Já garantiu uma redemocratização, mas a Emenda Parlamentar que permitia a população votar diretamente para presidente foi rejeitada no Congresso.

O professor de Direito da UFG Arnaldo Bastos afirma que esse movimento foi fundamental para mudança de regime de governo, mas não do grupo de dirigentes. Ele acredita que a democracia não demoraria a ser estabelecida devido ao fracasso do regime e que ter cedido à formação do Colégio Eleitoral contribuiu para que a impunidade de torturadores continuasse a constar na lei. “Não tivemos uma revolução democrática. Até hoje não reformamos a instituição violenta do Estado que é a polícia. Nossas polícias não se comportam como de um país democrático”, contesta.

Impunidade


O professor acredita que a Constituição de 1988 é muito boa, mas fez muitas concessões. “O balanço geral que faço da Constituição é positivo, mas tivemos perdas políticas e a impunidade dos torturadores é uma delas”, afirma Arnaldo. Juarez Maia reforça que a lei foi feita pelos movimentos políticos da burguesia atual em negociação com militares, mas tanto ele quanto Marcantônio acreditam que foi uma lei feita dentro das possibilidades da época e não teria como ser diferente.

Os danos foram muitos. Marcantônio perdeu emprego na TV Anhanguera em 1966. Conseguiu trabalho em outra televisão, mas como militava, a TV o demitiu. Quando foi preso em 1969, ele trabalhava num banco e também perdeu o emprego. “Danos morais se estendem de forma muito grande. Fui ter alguma indenização em Brasília em 2002 por dano material, baseado no primeiro emprego que perdi, não nos demais. Nem sei se chega a ser tão importante assim”, conta Marcantônio.

Em abril desse ano, o Superior Tribunal Federal rejeitou revisão da Lei de Anistia proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB questionava a concessão de anistia a agentes de ditadura. “Qualquer um que tenha que se envolvido em atos de tortura tem que pagar por isso. Se não fizermos isso, nossa polícia vai continuar torturando”, argumenta o professor Arnaldo. Ele acredita que o fato de não haver punição permite que ação continue a ser praticada.

Marcantônio argumenta que a tortura sempre existiu no Brasil e não é punindo, hoje, aqueles que a praticaram durante a ditadura que ela não continue a acontecer. Ele não é favorável que os coloquem na cadeia, primeiramente porque a lei não permite e é essa a decisão do STF. “Será que o momento é de olharmos para trás com rancor, com ódio, revanchismo? É positivo? Não é melhor olharmos para trás de outra forma, reconhecendo erros e não deixarmos que isso aconteça de novo?”, contesta.

Além disso, Marcantônio sustenta que a maioria dos torturadores está morta e que, se fosse para julgá-los, deveria também julgar comandantes militares, os principais responsáveis, presidentes e ministros. Juarez compartilha do posicionamento de Marcantônio. “Eu não gostaria de ver nenhum velhinho na cadeia, pois estaria sendo injusto. Teria que prender também os responsáveis. Mas não concordo que a memória nacional seja apagada”. Arnaldo, por outro lado, questiona. “Se alguém com 90 anos de idade pratica homicídio, ela estaria impune?”.

Daqui pra frente


Por outro lado, Marcantônio reconhece que as torturas continuam com presos comuns. “Olha o que fizeram no Carandiru em plena democracia. Aqui no Parque Oeste Industrial. Humilharam as famílias de forma absurda, mataram três pessoas e não foram punidos. Veja quantos presos foram mortos durante a ditadura e em uma hora, eles mataram 111 presos no Carandiru”, lembra. O que fizeram no Carandiru, para Marcantônio, é reflexo da repressão que acontecia na Ditadura, mas completa. “Temos que criar uma maneira inteligente de impedir isso, não é punindo torturadores, mas através da educação. A mim, só me cabe perdoar”.



Juarez Maia é a favor da criação de uma comissão nacional de memória do período da ditadura. Ela se encarregaria de saber o que aconteceu, quem foram os culpados, quem torturou, quem mandou torturar, porque se torturou, quem foram mandantes, etc. “E também registrar o outro lado: quem participou dos movimentos, da luta armada, como; enfim, passar a história nacional do Brasil a limpo”, afirma.

Já Marcantônio compartilha da proposta da Associação dos Anistiados de criar Tribunal Popular Nacional para julgar crimes praticados durante o período militar. “Não tem força de lei, mas tem força moral. Condena os torturadores de forma ética e moral”, explica. Ele ainda acredita que o mais correto seria colocar essa história do Brasil nos currículos dos ensinos fundamental e médio, para que se transmita a história de forma mais real. “Essa é uma maneira de educar a população”, explica Marcantônio, que já foi professor de História.

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